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Aventuras... no comboio #3

Mais um dia de tempestade, nada de novo.
Entro no comboio. Um cheiro, entre cão molhado e selecção de enchidos, ataca-me de imediato.
Sento-me num dos poucos lugares disponíveis. Arrependimento instantâneo: o passageiro ao meu lado exala um belíssimo bafo a alho. Tento várias estratégias para fintar este cheiro, mas é como um nevoeiro verde que está por toda a parte. Lá disfarço, entre creme das mãos perfumado, abundantemente espalhado pelas ditas e um cachecol bem subido para o nariz.
A viagem corre como habitualmente, enfio os fones nos ouvidos só para garantir que não haverá tentativa de conversa. Hoje não quero saber de nada, passei o dia todo a ser simpática, já chega.
Mais uma paragem e entra uma mulher desgrenhada, de cabelo e roupa pretos: uma capa de lã, cheia de borboto e um saco gigante do Lidl prendem-me o olho libriano. A mulher parece um corvo gordo e entretenho-me a observar as unhas lascadas, de um rosa dissonante.
De repente, reparo que o comboio não retomou a sua marcha. Olho para o painel informativo da carruagem e passa a mensagem: “avaria na catenária” bla bla “atraso”. Penso para mim que engenharia de comboios devia ter sido uma disciplina obrigatória algures, no meu percurso escolar, porque não faço ideia do que é uma catenária. Suspiro, não quero saber de nada, hoje.
Ninguém se mexe, nem o comboio. De repente um grupo de mulheres de saltos altos desfila pelo comboio fora, em passo decidido, removo um dos fones, mas desconfio que não são as mecânicas de serviço. Antes que alcancem a porta do maquinista, sai de lá um revisor assustado que tenta gesticular e corresponder ao que quer que seja que as mulheres dizem.
De uns lugares ao lado, uma jovem desabafa: “Somos mesmo portugueses!” Não sei o que quer dizer com isto, hoje sou esquimó, não quero saber de nada. O bafo-a-alho responde qualquer coisa imperceptível e a corvo-gordo atira para o ar “O que mais nos irá acontecer hoje? Tem sido um dia…” Ninguém lhe dá seguimento à conversa e ela saca de uma bolacha de água e sal do seu saco, que rói, com ar murcho e tristonho. Os borbotos da capa de lã enfeitados agora de migalhas.

Opto por voltar ao fone e à música. Hoje não quero saber de nada.  O comboio arranca suavemente e vejo sorrisos à minha volta. Mais um dia. 

2 comentários:

  1. Adorei este texto! Todos temos dias em que não queremos saber de nada...
    Força :)

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